Apreensão de documentos em casos de inadimplência gera debate
De acordo com números divulgados recentemente em pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a fatia endividada da população brasileira atingiu o seu maior nível em 12 anos, atingindo 77,7% das famílias do país. Nos casos em que as pessoas não realizam os devidos pagamentos, tornando-se inadimplentes, além da inserção em órgãos de proteção ao crédito como o SPC e Serasa, os credores podem solicitar outras medidas contra o devedor, como a apreensão ou suspensão de documentos pessoais.
Após a reformulação do Código de Processo Civil (CPC), promulgada em 2015, um dos seus artigos (139, IV) reforçou a possibilidade da aplicação das chamadas medidas atípicas, consideradas medidas de coerção indiretas e psicológicas. Nessa categoria se encaixam a apreensão da CNH, do passaporte e cartões de crédito, com o objetivo de garantir o cumprimento de certas obrigações, incluindo ordens judiciais de quitação de dívidas.
Mas a execução dessa determinação tornou-se um ponto de divergência entre especialistas, advogados e magistrados, no que toca aos seus limites e à possibilidade de estar infringindo direitos constitucionais. “A lei determina que tais decisões sejam sobre os bens e não sobre a pessoa do devedor”, diz Felício Valarelli, advogado e consultor empresarial.
No entendimento de Valarelli, que é especialista em questionamento judicial de dívidas e recuperação judicial de empresas, o artigo do CPC não esclarece os casos em que tal dispositivo deve ser aplicado, “o que por certo entra em conflito com a Constituição Federal, que preserva o direito de ir e vir”.
Nos últimos anos, em algumas das ocasiões em que a decisão foi aplicada, a controvérsia no seu entendimento trouxe questionamentos que chegaram até o STJ. E mesmo no Superior Tribunal de Justiça o parecer não foi consensual.
Por exemplo, em um dos casos foi decidido que a apreensão do passaporte era desproporcional. Mas, a suspensão da CNH não configurava uma violação ao direito de ir e vir, já que não impedia, de fato, a circulação do indivíduo. E, ainda assim, a questão como um todo permaneceu em aberto, com a orientação de ser avaliada caso a caso.
Em uma avaliação rigorosa a execução do artigo dependeria de uma análise minuciosa, proporcional e razoável. A validade estaria, por exemplo, em um cenário que comprove que o devedor esteja ocultando patrimônio ou demonstre sinais de riqueza em um padrão de vida incompatível com a sua situação financeira e as obrigações pendentes.
Portanto, medidas coercitivas seriam pertinentes somente depois de frustradas todas as outras providências passíveis de aplicação – como o bloqueio e penhora de valores e outros bens.
Outra das preocupações geradas por esse tipo de decisão diz respeito aos limites no uso desses artifícios. “Seriam uma brecha para seríssimos precedentes em futuras decisões, onde poderiam passar a admitir penas radicais e involutivas aos devedores”, assevera Valarelli.
Ainda nas palavras do especialista, não se pode esquecer que a liberdade de locomoção é a primeira de todas as liberdades, sendo condição de quase todas as demais. O implemento de medidas coercitivas como essas contra os devedores seriam uma arbitrariedade, já que implicam em restrição da liberdade de locomoção da pessoa.
“Permitir a apreensão de passaporte ou CNH do devedor como forma de coação para garantir o pagamento, não se coaduna com o nosso Estado Democrático de Direito”, pondera o advogado.
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